Recurso Especial. Sucessões. Arrolamento de bens. Usufruto vidual.

Chamada:

(…) Referida controvérsia foi enfrentada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721/RS e 878.694/MG, em que se declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, em que se propôs a seguinte tese:”No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.” 2. O recurso especial deve ser provido apenas para negar o direito da recorrida ao usufruto vidual, mantendo-a habilitada nos autos do arrolamento/inventário, devendo ser observados e conferidos a ela os direitos assegurados pelo CC/2002 aos cônjuges sobreviventes, conforme o que for apurado nas instâncias ordinárias acerca de eventual direito real de habitação. 3. Recurso especial provido.

Jurisprudência na Íntegra:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.139.054 – PR (2009⁄0086949-3)
RELATOR : MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO)
RECORRENTE : N R G – ESPÓLIO
REPR. POR : N R G – INVENTARIANTE
ADVOGADA : JOÃO EURICO KOERNER E OUTRO (S) – PR034748
RECORRIDO : C F
ADVOGADO : SEBASTIÃO M MARTINS NETO – PR014978
INTERES. : J B S E OUTROS
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SUCESSÕES. ARROLAMENTO DE BENS. EX-COMPANHEIRA. DESCOMPASSO ENTRE SUCESSÃO DE CÔNJUGE E SUCESSÃO DE COMPANHEIRO. HABILITAÇÃO NO INVENTÁRIO DEVIDA. DIREITO AO USUFRUTO VIDUAL. NÃO CABIMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. SUCESSÃO QUE DEVE OBSERVAR O REGIME ESTABELECIDO NO ART. 1.829 DO CC⁄2002. RECURSO PROVIDO.
1. Referida controvérsia foi enfrentada recentemente pelo colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721⁄RS e 878.694⁄MG, em que se declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, em que se propôs a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.”
2. O recurso especial deve ser provido apenas para negar o direito da recorrida ao usufruto vidual, mantendo-a habilitada nos autos do arrolamento⁄inventário, devendo ser observados e conferidos a ela os direitos assegurados pelo CC⁄2002 aos cônjuges sobreviventes, conforme o que for apurado nas instâncias ordinárias acerca de eventual direito real de habitação.
3. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira (Presidente) e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator. Sustentou, oralmente, o Dr. João Eurico Koerner, pela parte recorrente.
Brasília, 06 de fevereiro de 2018 (Data do Julgamento)
MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO)
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.139.054 – PR (2009⁄0086949-3)
RELATOR : MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO)
RECORRENTE : N R G – ESPÓLIO
REPR. POR : N R G – INVENTARIANTE
ADVOGADA : JOÃO EURICO KOERNER E OUTRO (S) – PR034748
RECORRIDO : C F
ADVOGADO : SEBASTIÃO M MARTINS NETO – PR014978
INTERES. : J B S E OUTROS
RELATÓRIO
O SR. MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO):
Cuida-se de agravo de instrumento interposto por CÉLIA FRANCO contra decisão que indeferiu a pretensão da ora recorrente de ver garantido o seu direito de habilitação no inventário e ao usufruto vidual da quarta parte dos bens do Espólio de seu ex-companheiro, falecido em 24⁄07⁄2005, com quem conviveu por 25 anos, conforme o disposto no art. 2º da Lei 8.971⁄94, o qual, segundo o entendimento do juízo do inventário, teria sido revogado pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002.
Contra referida decisão foi interposto agravo de instrumento, provido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ARROLAMENTO DE BENS. EX- COMPANHEIRA. DIREITO AO USUFRUTO VIDUAL DE QUARTA PARTE DOS BENS DO FALECIDO. ART. 2º DA LEI 8.971⁄94, NÃO REVOGADO PELO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. AUSÊNCIA DE TRATAMENTO INTEGRAL DA MATÉRIA.
1. O art. 1.790 do Código Civil não revogou o art. 2º da Lei 8.971⁄94.
2. Primeiramente, por não haver sido dado tratamento integral à matéria disciplinada pela lei anterior, o que afasta a revogação tácita prevista pelo artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.
3. Ainda, por conta do artigo 9º da Lei Complementar nº 95⁄1998 (com redação dada pela Lei Complementar nº 107⁄2001), faz-se necessária previsão expressa (por meio de cláusula revogatória) de leis conflitantes revogadas pela atual. No caso do Código Civil, esta cláusula revogatória está positivada no artigo 2.045, e não abrangeu leis específicas que tratam da união estável.
4. Assim, deixar de reconhecer o direito ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, não aplicando a Lei nº 8.971⁄94, por considerá-la revogada pelo Código Civil de 2002, significa relegar ao desamparo o companheiro supérstite na hipótese de não haver patrimônio comum, pois quando se trata de sucessão de companheiro, as leis anteriores são de aplicação necessária face às lacunas existentes no atual diploma civil, que cuidou do direito sucessório na união estável apenas no art. 1790, sem fazer qualquer referência ao usufruto vidual.
5. Recurso conhecido e provido.” (e-STJ, fl. 96)
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (e-STJ, fls. 128⁄132).
Nas razões do recurso especial baseado na alínea a do permissivo constitucional, a parte recorrente alega, em síntese, que o art. 2º da Lei 8.971⁄94 foi revogado pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002, diploma vigente ao tempo da abertura da sucessão. Sustenta que, conforme ressaltado pelo voto vencido do acórdão recorrido, ” à semelhança do art. 2º, da Lei 8.971⁄96, que previa o usufruto vidual para o convivente, o art. 1.611, § 1º, do Código Civil⁄1916 o previa para o cônjuge. O novo Código Civil não reproduziu esse direito nem para um nem para o outro. Por isso, as respectivas normas anteriores encontram-se revogadas ” (e-STJ, fl. 139).
Por fim, salienta ser o típico caso de revogação tácita, nos termos do art. 9º da LC 95⁄98 ou LC 107⁄2001 e do art. 2º, § 1º, da LINDB. Ressalta que as normas do art. 2º da Lei 8.971⁄94 e da Lei 9.278⁄96 são incompatíveis com o art. 1.790 do Código Civil de 2002, porquanto ambas regulam matéria idêntica de forma diversa, qual seja a forma de participação do companheiro na sucessão do sobrevivente.
Em contrarrazões, a parte recorrida sustenta ter o direito ao usufruto da quarta parte dos bens do espólio com base no art. 2º da Lei 8.971⁄94. Sustenta que a revogação de lei anterior por lei nova deve ser expressa, o que não ocorreu no caso dos autos.
O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do recurso especial ante a ausência de prequestionamento do art. 14, § 3º, I, da LC 107⁄2001 e pela vigência da lei que prevê o usufruto vidual, o qual não foi previsto no Código Civil, o que afasta a alegada violação ao art. 2º, § 1º, da LINDB.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.139.054 – PR (2009⁄0086949-3)
VOTO
O SR. MINISTRO LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO) – Relator:
Na origem, cuida-se de arrolamento de bens, decorrente do falecimento de NELSON ROSEIRA GOMES, requerido por dois filhos e dois netos do falecido.
A ora recorrida, que conviveu em união estável com o de cujus por 25 anos, peticionou naquele momento requerendo sua habilitação nos autos do inventário e pretendendo o reconhecimento do seu legítimo direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, nos termos do art. 2º da Lei 8.971⁄94. O Juízo de origem indeferiu referidos pedidos, em síntese, nos seguintes termos:
“Anote-se, por fim, que em manifestação de fl. 79 a companheira disse expressamente que”não está pleiteando qualquer participação no patrimônio do inventariado. Ve-se (fls. 54) que apenas requereu sua habilitação no inventário e o reconhecimento do direito ao usufruto da quarta parte dos bens do ‘de cujus’, com fulcro no art. 2o , I,da Lei nº 8.791⁄94”, daí porque o pronunciamento judicial se restringe ao direito postulado.
3. Destarte, indefiro o pedido de fls. 52⁄54 por entender que, com a revogabilidade do artigo 2o da Lei nº 8.971⁄94 pelo artigo 1.790 do Código Civil, não possui a companheira direito ao usufruto vidual de quarta parte dos bens do falecido e, de conseqüência, indefiro o pedido de fls. 59⁄60 ante a não demonstração do interesse jurídico na obtenção das informações.” (e-STJ, fl. 39)
Contra referida decisão, a recorrida CÉLIA FRANCO interpôs agravo de instrumento alegando que: a) o direito da recorrente ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus decorre do que dispõe o art. 2º da Lei 8.971⁄94; b) o Código Civil não revogou expressamente o comando normativo inscrito no art. 2º da Lei 8.971⁄94; c) segundo o art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil, a lei nova que estabelece disposições gerais acerca das já existentes não tem o condão de revogar disposições anteriores; d) a juíza de primeiro grau deu interpretação equivocada a acórdão do STJ que trataria do tema. Requereu, ao final, o provimento do recurso para permitir a habilitação e participação da então agravante nos autos do inventário e para garantir o direito ao usufruto.
A Corte de origem, ao julgar o agravo de instrumento, deu provimento ao recurso, por maioria, pela seguinte fundamentação, que peço vênia para transcrever, pois bem esclarece a controvérsia, in verbis :
“O cerne da controvérsia reside na revogação, ou não, do artigo 2º da Lei 8.971⁄1994 pelo artigo 1.790 do Código Civil de 2002.
Primeiramente, percebe-se que a agravante pretende tutela diversa àquela prevista pelo art. 1.790 do Código Civil – o qual disciplina a aquisição de quotas do quinhão hereditário pelo (a) companheiro (a) – postulando apenas”sua habilitação no inventário e o reconhecimento do direito ao usufruto da quarta parte dos bens do ‘de cujus’, com fulcro no art. 2º, I, da Lei nº 8.971⁄94″(fls. 38).
No art. 1.790 do Código de 2002 (fundamento da decisão atacada), o legislador não trata de matéria atinente ao usufruto, razão pela qual não pode a pretensão da agravante ser subsumida a este dispositivo.
Consoante entendimento da doutrina especializada:
“Agora, o Código Civil omite a noção de usufruto, mesmo o vidual, e se refere apenas à”quota”, com base, certamente, na intenção de guindar (a) o companheiro (a) ao mesmo patamar do cônjuge, na ordem de vocação hereditária”. (Grifamos)
Dessa forma, não há que se falar em tratamento integral da matéria da lei anterior pelo codificador, o que afasta a incidência da revogação prevista pelo artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Não obstante, sustenta, com acerto, a agravante (fls. 05), a impossibilidade de revogação tácita do referido diploma, em virtude do artigo 9º Lei Complementar nº. 95⁄1998 (com redação dada pela Lei Complementar nº. 107⁄2001), o qual prevê a necessidade de menção expressa à eventual revogação de lei. Por essa razão, estaria proibido o uso da corrente expressão legislativa” revogam-se as disposições em contrario”.
Nesse sentido se posicionou esta Corte:
“PROCESSO CIVIL E DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. CONCESSÃO DE LIMINAR. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E DE USUFRUTO. UNIÃO ESTÁVEL. DIREITOS PRESERVADOS EM NORMAS ESPECÍFICAS. PRESENÇA DO FUMUS BONI JURIS E PERICULLUM IN MORA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.”
Extrai-se do corpo do acórdão:
“Diferente do que tentam afirmar os agravantes, o novo código civil não revogou as leis 8971⁄94 e 9278⁄96.
Como se observa do disposto no artigo 2045 do CC⁄2002, apenas foram revogados, com a admissão desse o Código Civil de 1916, e a prime ira parte do Código Comercial.
Quanto ao argumento de uma eventual revogação tácita, vale ressaltar que tal modalidade revogatória não pode ocorrer em situações, como a presente, de lei geral posterior revogar lei especial anterior. Ademais, a revogação deveria ser expressa a teor da LC 95⁄98.”
Assim, considerando que a tutela pretendida – reconhecimento ao usufruto vidual – é disciplinada apenas pela Lei nº 8.971⁄94, não havendo tratamento da matéria no novo Código Civil, é de se determinar sua aplicabilidade, a fim de resguardar o direito da agravante ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, hipótese prevista pelo art. 2º, inciso I da referida lei.
Conforme elucida o julgado supracitado:
“Vale ressaltar que o direito real de habitação que possui a agravada, bem como o direito ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus não são decorrentes de sua condição de herdeira de referidos bens, mas sim do direito que possuem os companheiros regulados pelas leis 8971⁄94 e 9278⁄96.”
Porque, não pensar dessa maneira, isto é, deixar de reconhecer o direito ao usufruto de quarta parte dos bens do falecido, não aplicando a Lei nº 8.971⁄94, por considerá-la revogada – entendimento equivocado – pelo Código Civil de 2002, significa relegar ao desamparo o companheiro supérstite na hipótese de não haver patrimônio comum, como na hipótese dos autos, não obstante a existência de respeitáveis opiniões em sentido contrário, pois quando se trata de sucessão de companheiro, as leis anteriores são de aplicação necessária face as lacunas existentes no atual diploma civil, que cuidou do direito sucessório na união estável apenas no art. 1790 , sem fazer qualquer referência ao usufruto vidual.
Ante o exposto, o recurso merece provimento para, reformando-se a r. decisão agravada, admitir o ingresso da autora no arrolamento, assegurando-lhe o direito ao usufruto vidual de quarta parte dos bens do falecido, nos termos do art. 2º da Lei 8.971⁄1994 .
3. Diante do exposto, proponho voto no sentido de conhecer e dar provimento ao recurso, nos termos da fundamentação.” (e-STJ, fls. 97⁄99)
Nas razões do recurso especial interposto pelo espólio de Nelson Roseira Gomes, o recorrente alega violação aos arts. 9º da LC 95⁄98, 14 da LC 107⁄2001 e 2º, § 1º, da LINDB, quanto à possibilidade de revogação tácita e expressa, o que sustenta ter ocorrido com a Lei 8.971⁄94 com a vigência do art. 1.790 do Código Civil de 2002, que deve ser aplicado em seu lugar. Sustenta, ainda, afronta ao art. 1.725 do CC que, diante do princípio da igualdade, prevê que deve ser dado o mesmo tratamento aos cônjuges e aos companheiros, já que o CC⁄2002 não previu o usufruto vidual nem para os casados nem para os companheiros.
Trago o presente caso ao Colegiado por entender que a solução da controvérsia não se restringe à conclusão sobre a revogação ou não da lei que instituiu o usufruto em favor do companheiro sobrevivente ante a superveniência do art. 1.790 do CC, que teria tratado da sucessão do companheiro.
Durante vários anos, debateu-se na doutrina sobre o retrocesso que configurava o tratamento conferido pelo Código Civil de 2002 à sucessão do companheiro, especialmente discutindo-se a diferenciação exacerbada entre esta e a sucessão do cônjuge.
A própria Constituição Federal, em seu art. 226, adequando-se à nova realidade social e respeitando as diversas formas de afeto e comunhão que verdadeiramente são elementos que constituem uma família, estabeleceu:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Referida controvérsia foi enfrentada recentemente pelo colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721⁄RS e 878.694⁄MG, em que se declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, quando se propôs a seguinte tese: ” No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002. “
Na ocasião do julgamento do RE 646.721⁄RS, em sua antecipação de voto, o em. Ministro Luís Roberto Barroso bem resumiu a questão historicamente, in verbis :
“Ali, assinalou-se que, após a Constituição de 1988, que previa essas diferentes modalidades de família, sobrevieram duas leis ordinárias – as Leis 8.971⁄1994 e 9.278⁄1996 – que equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da união estável. Portanto, esse foi o regime jurídico que vigorou durante muito tempo.
O Código Civil de 2002, que entrou em vigor em 2003, modificou essa situação. Como sabemos – e há textos expressivos do eminente Ministro Edson Fachin nessa linha -, o Código Civil foi aprovado nos anos 2000, mas foi produto de um debate que se fez na década 70, um debate anterior a inúmeras questões, que somente se colocaram tempos depois, diante da sociedade e das escolhas legítimas das pessoas. Portanto, o Código Civil é de 2002, mas ele chegou atrasado relativamente às questões de direito de família.
Desse modo, o Código Civil, contrariando a legislação vigente pós 88, desequiparou, para fins de sucessão, o casamento e as uniões estáveis, e, assim promoveu um retrocesso e uma hierarquização entre as famílias que a Constituição não admite. Penso que a Constituição trata todas as famílias com o mesmo grau de valia, sendo merecedoras da mesma dose de respeito e consideração. Portanto, o art. 1.790 do Código Civil é inconstitucional, porque viola princípios constitucionais como o da igualdade, o da dignidade da pessoa humana, o da proporcionalidade na modalidade de proibição da proteção deficiente e o da vedação do retrocesso.”
A tese da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002 também já foi enfrentada por esta eg. Corte de Justiça em julgado da relatoria do em. Ministro Luis Felipe Salomão, no REsp 1.337.420⁄RS, quando este Colegiado decidiu seguir as diretrizes traçadas pela Suprema Corte naqueles recursos extraordinários, e pela col. Terceira Turma, no REsp 1.332.773⁄MS, da relatoria do em. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que foram assim ementados, respectivamente:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ADOÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA. SUCESSÃO. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL. REGIMES JURÍDICOS DIFERENTES. ARTS. 1790, CC⁄2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. EQUIPARAÇÃO. CF⁄1988. NOVA FASE DO DIREITO DE FAMÍLIA. VARIEDADE DE TIPOS INTERPESSOAIS DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA. ART. 1829, CC⁄2002. INCIDÊNCIA AO CASAMENTO E À UNIÃO ESTÁVEL. MARCO TEMPORAL. SENTENÇA COM TRÂNSITO EM JULGADO.
1. A diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável, promovida pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002 é inconstitucional, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na dimensão do valor intrínseco, quanto na dimensão da autonomia. Ao outorgar ao companheiro direitos sucessórios distintos daqueles conferidos ao cônjuge pelo artigo 1.829, CC⁄2002, produz-se lesão ao princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente. Decisão proferida pelo Plenário do STF, em julgamento havido em 10⁄5⁄2017, nos RE 878.694⁄MG e RE 646.721⁄RS.
2. Na hipótese dos autos, o art. 1790, III, do CC⁄2002 foi invocado para fundamentar o direito de sucessão afirmado pelos recorridos (irmãos e sobrinhos do falecido) e consequente legitimidade ativa em ação de anulação de adoção. É que, declarada a nulidade da adoção, não subsistiria a descendência, pois a filha adotiva perderia esse título, deixando de ser herdeira, e, diante da inexistência de ascendentes, os irmãos e sobrinhos seriam chamados a suceder, em posição anterior à companheira sobrevivente.
3. A partir da metade da década de 80, o novo perfil da sociedade se tornou tão evidente, que impôs a realidade à ficção jurídica, fazendo-se necessária uma revolução normativa, com reconhecimento expresso de outros arranjos familiares, rompendo-se, assim, com uma tradição secular de se considerar o casamento, civil ou religioso, com exclusividade, o instrumento por excelência vocacionado à formação de uma família.
4. Com a Constituição Federal de 1988, uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, surgiu, baseada num explícito poliformismo familiar, cujos arranjos multifacetados foram reconhecidos como aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado família, dignos da especial proteção do Estado, antes conferida unicamente àquela edificada a partir do casamento.
5. Na medida em que a própria Carta Magna abandona a fórmula vinculativa da família ao casamento e passa a reconhecer, exemplificadamente, vários tipos interpessoais aptos à constituição da família, emerge, como corolário, que, se os laços que unem seus membros são oficiais ou afetivos, torna-se secundário o interesse na forma pela qual essas famílias são constituídas.
6. Nessa linha, considerando que não há espaço legítimo para o estabelecimento de regimes sucessórios distintos entre cônjuges e companheiros, a lacuna criada com a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002 deve ser preenchida com a aplicação do regramento previsto no art. 1.829 do CC⁄2002. Logo, tanto a sucessão de cônjuges como a sucessão de companheiros devem seguir, a partir da decisão desta Corte, o regime atualmente traçado no art. 1.829 do CC⁄2002 (RE 878.694⁄MG, relator Ministro Luis Roberto Barroso).
7. A partir do reconhecimento de inconstitucionalidade, as regras a serem observadas, postas pelo Supremo Tribunal Federal, são as seguintes: a) em primeiro lugar, ressalte-se que, para que o estatuto sucessório do casamento valha para a união estável, impõe-se o respeito à regra de transição prevista no art. 2.041 do CC⁄2002, valendo o regramento desde que a sucessão tenha sido aberta a partir de 11 de janeiro de 2003; b) tendo sido aberta a sucessão a partir de 11 de janeiro de 2003, aplicar-se-ão as normas do 1.829 do CC⁄2002 para os casos de união estável, mas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública, na data de publicação do julgamento do RE n. 878.694⁄MG; c) aos processos judiciais com sentença transitada em julgado, assim como às partilhas extrajudiciais em que tenha sido lavrada escritura pública, na data daquela publicação, valerão as regras dispostas no art. 1790 do CC⁄2002.
8. Recurso especial provido.”
(REsp 1.337.420⁄RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22⁄08⁄2017, DJe de 21⁄09⁄2017)
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS. IMPOSSIBILIDADE. ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INCONSTITUCIONALIDADE. STF. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ART. 1.829 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRINCÍPIOS DA IGUALDADE, DIGNIDADE HUMANA, PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. INCIDÊNCIA. VEDAÇÃO AO RETROCESSO. APLICABILIDADE.
1. No sistema constitucional vigente é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC⁄2002, conforme tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento sob o rito da repercussão geral (Recursos Extraordinários nºs 646.721 e 878.694).
2. O tratamento diferenciado acerca da participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido conferido pelo art. 1.790 do Código Civil⁄2002 ofende frontalmente os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade e da vedação ao retrocesso.
3. Ausência de razoabilidade do discrímen à falta de justo motivo no plano sucessório.
4. Recurso especial provido.”
(REsp 1.332.773⁄MS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27⁄06⁄2017, DJe de 1º⁄08⁄2017)
No caso concreto, a companheira sobrevivente requereu sua habilitação no arrolamento de bens⁄inventário de seu ex-companheiro, com quem convivera por 25 anos, e o direito ao usufruto conferido pela Lei 8.971⁄94 em época em que vigorava o Código Civil de 2002 sem nenhuma ressalva quanto à flagrante inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002. Assim, a questão foi decidida com base no conflito de leis no tempo e por especialidade, já que, à época, já se mostrava evidente o descompasso do tratamento sucessório conferido ao cônjuge e ao companheiro, devendo ser a lei ordinária utilizada para minimizar a omissão acerca da matéria no Código Civil.
A hipótese dos autos se enquadra perfeitamente aos dizeres de Zeno Veloso ao tentar ilustrar uma das injustiças trazidas com a vigência do art. 1.790, verbis :
“A companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época em que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu outros bens durante o tempo de convivência. Ficará esta mulher – se for pobre -, literalmente desamparada, mormente quando o falecido não cuidou de beneficiá-la em testamento, ou foi surpreendido pela morte antes de outorgar o testamento que havia resolvido fazer.”
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. In : Tratado de Direito das Famílias : União Estável . Belo Horizonte: IBDFAM, p. 232-233)
Na leitura do voto vencedor do acórdão recorrido, verifica-se que o relator, apesar de adotar conclusão que merecerá ser reformada, também pretendeu reduzir a discriminação entre a sucessão do cônjuge e a do companheiro:
“Assim, considerando que a tutela pretendida – reconhecimento ao usufruto vidual – é disciplinada apenas pela Lei nº 8.971⁄94, não havendo tratamento da matéria no novo Código Civil, é de se determinar sua aplicabilidade, a fim de resguardar o direito da agravante ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, hipótese prevista pelo art. 2º, inciso I da referida lei.
[…]
Porque, não pensar dessa maneira, isto é, deixar de reconhecer o direito ao usufruto de quarta parte dos bens do falecido, não aplicando a Lei n’ 8.971⁄94, por considerá-la revogada – entendimento equivocado – pelo Código Civil de 2002, significa relegar ao desamparo o companheiro supérstite na hipótese de não haver patrimônio comum, como na hipótese dos autos, não obstante a existência de respeitáveis opiniões em sentido contrário, pois quando se trata de sucessão de companheiro, as leis anteriores são de aplicação necessária face as lacunas existentes no atual diploma civil, que cuidou do direito sucessório na união estável apenas no art. 1790 , sem fazer qualquer referência ao usufruto vidual.
Ante o exposto, o recurso merece provimento para, reformando-se a r. decisão agravada, admitir o ingresso da autora no arrolamento, assegurando-lhe o direito ao usufruto vidual de quarta parte dos bens do falecido, nos termos do art. 20 da Lei 8.971⁄1994.” (e-STJ, fl. 99 – grifou-se)
Dessa forma, o recurso especial deve ser provido, apenas para negar o direito da recorrida ao usufruto vidual, mantendo-a habilitada nos autos do arrolamento⁄inventário, devendo ser observados e assegurados a ela os direitos conferidos pelo CC⁄2002 aos cônjuges sobreviventes, conforme o que for apurado nas instâncias ordinárias acerca de eventual direito real de habitação.
Diante do exposto, nos termos do art. 255, § 4º, III, do RISTJ, dou provimento ao recurso especial, apenas para negar o direito ao usufruto vidual conferido à recorrida, ressalvado eventual direito real de habitação.
É o voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2009⁄0086949-3
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.139.054 ⁄ PR
Números Origem: 3662793 366279302
PAUTA: 06⁄02⁄2018 JULGADO: 06⁄02⁄2018
SEGREDO DE JUSTIÇA
Relator
Exmo. Sr. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO)
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. ANTÔNIO CARLOS SIMÕES MARTINS SOARES
Secretária
Dra. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : N R G – ESPÓLIO
REPR. POR : N R G – INVENTARIANTE
ADVOGADA : JOÃO EURICO KOERNER E OUTRO (S) – PR034748
RECORRIDO : C F
ADVOGADO : SEBASTIÃO M MARTINS NETO – PR014978
INTERES. : J B S E OUTROS
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Família – União Estável ou Concubinato
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr (a). JOÃO EURICO KOERNER, pela parte RECORRENTE: N R G E OUTROS
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira (Presidente) e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Documento: 1671166 Inteiro Teor do Acórdão – DJe: 09/02/2018
Ementa na Íntegra:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SUCESSÕES. ARROLAMENTO DE BENS. EX-COMPANHEIRA. DESCOMPASSO ENTRE SUCESSÃO DE CÔNJUGE E SUCESSÃO DE COMPANHEIRO. HABILITAÇÃO NO INVENTÁRIO DEVIDA. DIREITO AO USUFRUTO VIDUAL. NÃO CABIMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. SUCESSÃO QUE DEVE OBSERVAR O REGIME ESTABELECIDO NO ART. 1.829 DO CC/2002. RECURSO PROVIDO. 1. Referida controvérsia foi enfrentada recentemente pelo colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721/RS e 878.694/MG, em que se declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, em que se propôs a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002.” 2. O recurso especial deve ser provido apenas para negar o direito da recorrida ao usufruto vidual, mantendo-a habilitada nos autos do arrolamento/inventário, devendo ser observados e conferidos a ela os direitos assegurados pelo CC/2002 aos cônjuges sobreviventes, conforme o que for apurado nas instâncias ordinárias acerca de eventual direito real de habitação. 3. Recurso especial provido.
(REsp: 1139054 PR 2009/0086949-3, Relator: Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Data de Julgamento: 06/02/2018, T4 – QUARTA TURMA,STJ)
2018-04-18T14:28:59-03:00